quinta-feira, 9 de julho de 2009

Aos que solteiros são.

Toda convivência exige alguma forma de disciplina. No caso do solitário, destinado a ter exclusivamente sua própria companhia, ele apenas se manterá lúcido e apto a sobreviver se estabelecer regras – e segui-las:

1. Viver em solidão pressupõe respeitar a si mesmo. Sem esse primeiro gesto de apreço, tudo perde sentido.

2. Acordar sempre no mesmo horário e não se permitir qualquer prostração. É necessário vigor: levantar-se, expulsar da mente os sonhos ruins e os presságios (são todos falsos) – e arremeter contra o dia.

3. A higiene e os cuidados pessoais são indispensáveis. Os gregos já conheciam o poder da água fria contra os maus humores.

4. As refeições compõem um ritual imprescindível. Nada de engolir, como um símio, algumas porcarias. Dedicar-se com esmero ao ato de sentar à mesa e alimentar-se. Aqui, toda pressa é nociva. Engana-se quem pensa que cuidar das coisas triviais representa perda de tempo.

5. Se o solitário trabalha em casa, deve assemelhar-se a Maquiavel, que se lavava, vestia-se como secretarius florentinus e só então se recolhia à biblioteca para escrever.

6. Sempre negar-se a reclamar da solidão. Para si e para outrem. O solitário é um privilegiado – e não só pelo fato de ir ao banheiro e deixar a porta aberta, como dizia o melancólico Antonio Maria –, pois tem a melhor companhia que pode existir (na falta de outras que porventura surjam, não graças ao destino, mas à livre escolha).

7. Celebre, todos os dias, a liberdade de criticar o mundo sem fazer concessões a um consorte nem sempre disposto a partilhar de sua ironia.

8. Se almejar companhia, deve buscá-la – mas sem desespero, sem auto-humilhação, sem aceitar menos do que anseia. Deve ser criterioso como se lhe sobrassem opções. Quando em dúvida, postergar a escolha. Se movido pela urgência, alugar, a preço justo, os serviços de alguém.

9. Jamais transferir seus afetos a um animal doméstico. Seria humilhar-se, decair na escala da evolução. Animais podem ser bons companheiros, mas não devem partilhar o dormitório ou as refeições. Ou, ridículo, serem tratados como humanos.

10. Precaver-se dos empregados. Recordar vivamente as contrariedades sofridas pelo sinólogo Peter Kien no romance de Elias Canetti. Sob o empregado fiel quase sempre se esconde um tirano.

11. Não enganar-se quanto à própria solidão. É conhecido o caso do bancário que, ao chegar à residência, acendia todas as luzes, ligava a tevê em alto volume e punha-se a imaginar ter amigos à sua volta: em pouco tempo passou a falar sozinho – foi o primeiro passo rumo à camisa-de-força.

12. Jamais considerar-se deprimido – ou, pior, depressivo. Seria o início de um mal cujo tratamento é infinito, consome grande parte das reservas financeiras e coloca o paciente sob as ordens de um alienista (Machado de Assis captou bem o significado desse risco). A depressão não passa de uma forma deletéria de olhar para si mesmo.

13. Nenhum desmazelo é aceitável, pois todos escondem falta de amor-próprio.

14. Cultivar hobbies. Especializar-se em jardinagem ou filatelia é preferível a gastar o tempo em rodinhas sociais, mendigando atenção, fazendo-se de palhaço ou ingerindo estupefacientes (nenhum deles supera a eficácia da nossa própria imaginação).

15. Não quebrar os laços familiares – mesmo que seja com a velha tia, caduca e ranzinza, que não deixará herança alguma.

16. Jamais, jamais aceitar o papel de terceiro, mediador ou juiz, principalmente em relações amorosas. O que lhe restará resume-se a um travo no coração – e o feliz e inconseqüente desprezo dos que o usaram.

17. Nunca alugar quartos a colegas de serviço, a fim de dividir despesas. A privacidade não pode ser violentada em nome da economia ou do sacrifício de se suportar estorvos. É preferível tornar-se monge trapista.

18. Não ensimesmar-se exageradamente. Mas ao menor sinal de que um estranho se aproxima movido pela compaixão ou pelo interesse, afastar-se. (Atenção: jamais sucumbir à curiosidade e aos favores da vizinha solteirona.)

19. Gravar, em local visível, o dístico de Schopenhauer: “Já aos trinta anos de idade estava sinceramente cansado de considerar como meus iguais seres que de fato não o são”.

20. Ter sincero e profundo orgulho de seu estado.

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